A inspiração para a Operação Catilinárias foi decerto Cunha, que testa a paciência de todos com suas manobras protelatórias e seu jogo cediço para tentar se livrar das acusações de quebra de decoro. “Até quando abusarás, Catilina, da nossa paciência?” é a frase que abre a primeira Catilinária. Troque Catilina por Cunha, e ela fará sentido. Mas é preciso tomar cuidado com o paralelo. Catilina foi um personagem sibilino e conspirador como Cunha. Mas as semelhanças param aí. Na época das Catilinárias, Roma estava perto do apogeu militar, mas vivia um momento econômico dificílimo. Catilina era um nobre empobrecido. Sua família tinha raízes antigas na aristocracia, mas ele estava afundado em dívidas. Perdera duas eleições para Cícero, e já naquele tempo isso custava caro. Sem condição de pagar o que devia, partiu para o populismo. Para agradar aos pobres, ressuscitou a ideia da Reforma Agrária. Para atrair outros nobres endividados, defendeu no Senado o perdão de todas as dívidas, na época chamado de “tabula nova” – hoje, isso faria corar até o mais heterodoxo defensor da “nova matriz econômica”. Os nobres senadores não gostaram nada dessa conversa. Catilina reuniu então um grupo de generais e se aliou a gauleses insatisfeitos. O plano era espalhar o terror por Roma, com incêndios e assassinatos, depois assumir o poder.
Graças a Fúlvia, amante de um aliado de Catilina, os planos chegaram a Cícero. Diferentemente de Catilina, ele era, na expressão de então, um “homem novo”, sem raízes na nobreza antiga. Devia seu sucesso ao talento como advogado, orador e político. Foi hábil o bastante para aliciar os gauleses e armar uma cilada para Catilina. Reuniu como provas cartas firmadas com o selo dos conspiradores. Em 7 de novembro, escapou de ser assassinado e convocou uma reunião do Senado para o dia seguinte. Foi quando proferiu o primeiro discurso e desmascarou Catilina, municiado pelas provas. Presente, Catilina conseguiu fugir para reunir-se a seus exércitos (ele morreria um ano depois em batalha). Nos dias seguintes, Cícero fez dois outros discursos à população, como salvador da pátria. Na última Catilinária, em 5 de dezembro, defendeu a pena de morte para os conspiradores no Senado. Foi contestado por um jovem senador de 37 anos, o futuro ditador Júlio César, que preferia a prisão. Pela primeira vez na história, alguém se manifestava contra a pena de morte. Não adiantou. Com base em um decreto que lhe conferia poderes especiais, Cícero mandou executar os conspiradores sem nem ao menos julgá-los.
A agilidade preservou a República, mas a falta de julgamento lançou Cícero em desgraça. Ele foi exilado, depois reabilitado, e terminou seus dias tentando resgatar sua reputação – devemos a isso o texto das Catilinárias. A própria República não resistiria nem duas décadas a novas tensões políticas e econômicas. O confronto com Catilina é um dos episódios mais documentados da História Antiga, mas a versão que ficou consagrada é a de Cícero. “Isso não significa que seja necessariamente verdadeira, ou que seja a única forma de enxergar os fatos”, escreve a historiadora Mary Beard. As críticas a Cícero já começaram em seu tempo. “É legítimo eliminar ‘terroristas’ fora do devido processo legal? Quanto devem os direitos civis ser sacrificados em nome dos interesses da segurança interna?”, pergunta Beard. Tantos são os reflexos da disputa que, diz Beard, “a história de Roma, como a conhecemos, começou aí”. E, pelo visto, não acabou.
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